A quem interessa uma justiça penal sobrecarregada?
Por Rogério Greco
Procurador de Justiça em Minas Gerais
Mestre em Ciências Penais pela UFMG e
Doutor pela Universidade de Burgos (Espanha)
Quando falamos em democracia, utilizando a velha definição
de Abraão Lincoln, podemos entendê-la como o governo do povo, pelo povo e para
o povo. Numa democracia tenta-se, a todo custo, preservar os direitos de
liberdade dos cidadãos. Ao contrário, quando estamos diante de um regime
ditatorial, as leis são editadas com finalidade diversa, ou seja, justamente
para limitar, abusivamente, segundo o arbítrio do detentor do poder, essa
liberdade.
No Brasil, ao que parece, vivemos uma democracia. No
entanto, a política criminal vigente é a mesma adotada nos países onde
prevalece o regime ditatorial. A todo instante surgem novas leis penais,
proibindo ou impondo determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção de
natureza penal. Vivemos, hoje, infelizmente, uma doença crônica, chamada de
inflação legislativa. Se, com a graça de Deus, já não falamos mais em inflação
econômico-financeira, esse modelo de inflação foi importado pelo Direito Penal.
Posso afirmar, com toda segurança, que, nem mesmo os
juristas mais dedicados conhecem todas as leis penais, todos os tipos penais
incriminadores. Esse excesso de leis, por mais incrível que possa parecer, nos
leva a uma sensação de anomia, ou seja, de ausência de leis.
A Justiça Penal já não consegue cumprir o seu papel de
julgar os fatos criminosos. Dessa forma, ocupam as prateleiras empoeiradas dos
cartórios criminais tanto processos que dizem respeito a fatos graves, como
aqueles que apuram outros cometidos por organizações criminosas, crimes contra
a ordem econômica e financeira, crimes contra a Administração Pública
(corrupção, concussão etc.), bem como infrações penais que dizem respeito a
fatos de pouca ou, na verdade, nenhuma importância, como ocorre com as
contravenções penais.
Recentemente, em 5 de maio de 2010, surgiu a Lei nº 12.234,
com a finalidade de acabar com a chamada prescrição retroativa, ou seja, aquela
que era contada a partir da data do cometimento do fato, até a data do efetivo
recebimento da denúncia. Essa prescrição conduzia à extinção da punibilidade
fatos que, normalmente, não eram considerados graves, a exemplo das lesões
corporais de natureza leve, crimes contra a honra, crimes contra o patrimônio
etc.
O cálculo da prescrição pode ser feito de duas formas. O
primeiro deles, leva em consideração a pena máxima cominada em abstrato para
cada infração penal. O segundo, considera a pena efetivamente aplicada na
sentença penal condenatória e, com base nessa pena, todos os cálculos são
refeitos, levando-se em consideração todos os marcos que tem por finalidade
interromper a prescrição. Esse cálculo era iniciado partindo-se da data do fato
em que a infração penal foi praticada, até o primeiro marco interruptivo da
prescrição, vale dizer, a data em que a denúncia foi recebida.
Hoje, em virtude da nova Lei, esse lapso temporal não mais
será considerado para efeitos de reconhecimento de prescrição, partindo-se da
pena aplicada pela sentença penal condenatória recorrível, mas tão somente para
efeitos de cálculo relativo a prescrição pela pena cominada em abstrato.
Para efeitos de visualização do que temos afirmado,
imagine-se a seguinte hipótese: Alfredo, no dia 10 de março de 2005, praticou
um crime de furto (consumado). A pena correspondente ao delito de furto simples
varia de 1 a 4 anos de reclusão. A prescrição, considerando-se a pena em
abstrato, ocorrerá em 8 anos, de acordo com o disposto no art. 109, V do Código
Penal. No entanto, a título de raciocínio, vamos supor que a denúncia tenha
sido recebida no dia 10 de abril de 2009, ou seja, pouco mais de 4 anos após a
prática do furto. Em 5 de janeiro de 2010, o juiz proferiu a decisão, e
condenou o autor do crime ao cumprimento de uma pena de 1 ano de reclusão.
A partir do conhecimento da pena concretizada na sentença
condenatória recorrível, isto é, 1 ano de reclusão, teríamos que refazer os
cálculos prescricionais e, nosso primeiro ponto de partida seria, justamente, a
data do fato, ou seja, a data em que o crime se consumou, vale repetir, em 10
de março de 2005. Se entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia
tivesse decorrido período igual ou superior a 4 anos (art. 109, V do CP),
teríamos que, obrigatoriamente, reconhecer a chamada prescrição retroativa, o
que conduzia, fatalmente, à extinção da punibilidade.
Agora, por conta da nova Lei, esse cálculo já não será mais
permitido. Assim, ou ocorrerá a prescrição levando-se em consideração a pena
máxima cominada em abstrato, ou os cálculos, com base na pena concretizada na
sentença condenatória, partirão do primeiro marco interruptivos da prescrição,
vale dizer, a data do recebimento da denúncia.
Isso, com toda certeza, conduzirá a um número enorme de
condenações, gerando uma situação de calamidade no sistema prisional, se é que
isso ainda é possível, uma vez que esse sistema já se encontra em níveis
insuportáveis. A grande pergunta é: A quem interessa uma Justiça penal
sobrecarregada? A quem interessa a multiplicação dos processos na fase da
execução da pena?
Essa multiplicação de processos de pequena importância
sobrecarregará a Justiça Penal de tal maneira que os processos entendidos como
mais importantes acabarão sendo deixados de lado.
Já chegou a hora (na verdade já passou da hora) de mudar a
política criminal típica de um movimento de lei e ordem, de direito penal
máximo, a fim de adotar uma outra, de natureza minimalista, elegendo
prioridades, punindo os fatos que importem em graves lesões aos bens jurídicos,
e deixando que os outros ramos do ordenamento jurídico, a exemplo do civil,
administrativo, tributário etc. Cuidem daqueles que não possuam a importância
exigida pelo Direito Penal.
Não podemos nos esquecer de que, quanto mais processos, mais
morosidade, e, consequentemente, mais impunidade dos fatos graves. Como se
sabe, o Direito penal é seletivo, e tem o seu público alvo, ou seja, a parcela
miserável da população. Essa afirmação é muito fácil de ser comprovada. É só
visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem
às classes média ou alta. O número será ridículo. No entanto, pergunta-se: Será
que no Brasil ocorre, com frequência, o crime de corrupção? Será que existem
sonegadores? As perguntas poderiam continuar até que abrangêssemos todas as
camadas sociais. Contudo, só o pobre, só o miserável é processado e preso.
Está na hora de mudar. Precisamos eleger prioridades, e não
existe prioridade maior do que o combate à corrupção. Os corruptos são, na
verdade, genocidas. São exterminadores de crianças, de doentes, de idosos. Sua
patologia (pois o corrupto é um doente, que nunca se sacia com o que tem, e
sempre busca mais) leva ao caos social; conduz a população ao desespero. O
corrupto, portanto, com seu sorriso, sua simpatia, seu colarinho branco,
continua a posar com ar hipocritamente austero, insensível ao mal que causa na
população.
Assim, concluindo, a nova Lei nº 12.234, de 5 de maio de
2010, longe de resolver os problemas que envolvem o Direito Penal,
sobrecarregará o sistema prisional com fatos de pouca importância. Além disso,
aumentará, enormemente, os processos que deverão ser julgados pelos Tribunais
Estaduais, e também os Superiores, uma vez que a ausência de reconhecimento da
prescrição retroativa aumentará o número de recursos. Dessa forma, pergunta-se,
mais uma vez: A quem interessa uma Justiça Penal sobrecarregada?