A vulnerabilidade do indivíduo frente ao
sistema social vigente como circunstância atenuante da pena
Rodrigo
Murad do Prado
Doutorando
em Direito Penal
Mestre
em Acesso à Justiça e Direito Processual
Defensor
Público do Estado de Minas Gerais
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo
demonstrar que os indivíduos das classes sociais menos favorecidas não precisam
ter o mesmo esforço para o cometimento de um delito em comparação aos
indivíduos das classes sociais superiores. Há patente desequilíbrio no grau de
reprovabilidade que deve recair sobre eles e, consequentemente, o juiz deve
considerar tal circunstância para atenuar a pena valendo-se do disposto do art.
66 do Código Penal.
A sociedade brasileira
atual vive uma crise social onde as classes sociais mais altas clamam modelos
de política criminal punitivistas e se valem do sistema jurídico penal como
maniqueísta e opressor das classes menos favorecidas.
O Direito Penal é
utilizado como instrumento de segregação e cotrole, sendo opressor das classes
menos favorecidas.
Os indivíduos hoje, são
selecionados como criminosos por um sistema penal deslegitimado, subserviente a
casta social superior. Essa seleção dá-se por estereótipos (cor da pele,
vestimentas, adereços, corte de cabelo, trejeitos, residência, grupo em que
está inserido e etc.). Por serem selecionados e por serem vulneráveis frente ao
sistema social sua reprovabilidade deve ser diminuída se comparado ao criminoso
do colarinho branco ou aquele membro da classe superior.
O filósofo prussiano Jean
Paul Marat, desenvolveu um estudo sobre a situação dos miseráveis frente a Lei.
Ele aduziu que a fonte da legitimidade da chamada obrigação de submeter-se às
leis é frágil e desarrazoada.
Tal obrigação não pode atingir àqueles que são excluídos
das vantagens da sociedade, arcando
com todas as suas desvantagens, pois a sociedade não pode exigir que todas as
pessoas obedeçam às leis, se não oferece pontos de partida igualitários a todas
essas pessoas. Aqueles que são miserabilizados pela exclusão acabam retornando
à sociedade natural, onde vigora a lei da selva, sendo compelidos, por forças
instintivas, às luta pela sobrevivência, donde emerge o crime patrimonial.
Qual a solução? Autorizar o roubo/furto? Não: proporcionar vida digna para
todos, emprego ao pobres, possibilidade de acesso aos meios legítimos; só
assim, oferecendo pontos de partida igualitários, é que a sociedade poderá
exigir a obediência às leis.
O sociólogo Americano Edwind Sutherland desenvolveu a teria
das subculturas criminais onde mostrou como a distribuição desigual do acesso
aos meios legítimos para alcançar objetivos culturais das minorias
desfavorecidas e a estratificação (divisão) de grupos sociais levaria a
relativização dos valores de grupos menos favorecidos, pois o “mínimo ético”
para estes é bem diferente do “mínimo ético” dos grupos detentores do poder.
Tal entendimento demonstra a VULNERABILIDADE dos indivíduos das camadas
carentes da sociedades frente ao sistema penal.
Alessandro Barrata, na clássica obra
Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal,
abordando a temática em questão, reza que:
"Se o processo de criminalização é o mais
poderoso mecanismo de reprodução das relações de desigualdade do capitalismo, a
luta por uma sociedade democrática e igualitária seria inseparável da luta pela
superação do sistema penal."
O
professor Eugênio Raúl Zaffaroni
prega que a intervenção do estado penal
deve ser mínima, pois estamos diante de uma sociedade dividia em castas
sociais e, na casta menos favorecida, as pessoas são mais vulneráveis, razão
pela qual a reprovabilidade deve ser reduzida proporcionalmente à desigualdade
existente. O Direito Penal
igualitário e que não propõe uma adequação a esta realidade criminológica e
sociológica está deslegitimado!
Eugénio Raul Zaffaroni ao
dizer que “el poder punitivo siempre
conservará su carácter irracional que deviene de su propia estrutura, de la
carencia de utilidad y por otro la inevitable falla ética con que lo sella la
selectividad” demonstra como o
sistema penal é seletivo e pune de forma materialmente desigual os pobres.
Na América Latina, vivemos um processo degenerado de deshumanização dos
indivíduos mestiços e pobres. Esses são atingidos pela seletividade do sistema
penal. Aglomeram-se formando um casta
social, cliente do sistema opressor das agências de controle social
formal (polícia, etc). O professor Zaffaroni,
em interessante artigo, faz uma retrospectiva sobre este fenômeno:
El poder de la burguesía europea
del siglo XIX fue generando una estética a su media. La verdad es que se fue
delineando un estereotipo del pobre bueno (física y moralmente bueno por
naturaleza) y otro del pobre malo (feo y amoral por naturaleza).
Todo lo que agredía a la
burguesía era lo malo y todo lo malo era lo feo, por primitivo y salvaje. Tanto
el pobre que agredía como el colonizado que se rebelaba eran salvajes, ambos
bajo el signo del primitivismo. El enemigo es feo porque es primitivo o
salvaje: ese fue el mensaje.
Lógicamente, eran feos los pobres
porque estaban mal alimentados y en pauperrimas condiciones de higiene.
La fealdad del pobre era la que
regía el estereotipo con el cual salían las perreras a dar caza a los enemigos
de la burguesía y a enjaularlos en sus cárceles.
Bastaba con ir a los zoológicos
humanos carcelarios y manicomiales para convencerse de eso: todos eran feos y
malos, primitivos, lo mismo que los salvajes colonizados.
O significado político do
controle social realizado pelo Direito Penal e pelo Sistema de Justiça Criminal
aparece nas funções reais desse setor do Direito: a criminalização primária
realizada pelo Direito Penal (definição legal de crimes e de penas) e a
criminalização secundária realizada pelo sistema de Justiça Criminal (aplicação
e execução de penas criminais) garantem a existência e a reprodução da
realidade social desigual das sociedades contemporâneas.
O Sistema de Justiça
Criminal realiza a função declarada de garantir uma ordem social justa,
protegendo bens jurídicos gerais e, assim, promovendo o bem comum. Essa função
declarada é legitimada pelo discurso oficial da teoria jurídica do crime, como
critério de racionalidade construído com base na lei penal, e pelo discurso
oficial da teoria jurídica da pena, fundado nas funções de retribuição de
prevenção especial e de prevenção geral atribuídas à pena criminal.
Assim, mediante as
definições de crimes e cominações de penas, o legislador protege interesses e
necessidades das classes e categorias sociais hegemônicas da formação social,
incriminando ações lesivas das relações de produção e de circulação da riqueza
material, concentradas na criminalidade patrimonial comum, característica
dessas classes e categorias sociais subalternas, privadas de meios materiais de
subsistência animal: as definições de crimes fundados em bens jurídicos próprios
das elites econômicas e políticas da formação social garantem os interesses e
as condições necessárias à existência de reprodução dessas classes sociais. Em
consequência, a proteção penal seletiva de bens jurídicos das classes e grupos
sociais hegemônicos pré-seleciona os sujeitos estigmatizáveis pela sanção
penal, os indivíduos pertencem às classes e aos grupos sociais subalternos,
especialmente os contingentes marginalizados do mercado de trabalho e do
consumo social, como sujeitos privados dos bens jurídicos econômicos e sociais
protegidos na lei penal.
O direito penal não atinge
de forma incisiva os autores do crime do colarinho branco, a criminalidade
econômica, a improbidade administrativa, crimes contra a ordem tributária,
relações de consumo, mercado de capitais, meio ambiente etc., gerando uma
sensação de impunidade entre aqueles que se arvoram na prática dos crimes e,
indiretamente, na sociedade, que convive com a falácia de que o Direito Penal é
igualitário. Na verdade, o Direito Penal é Simbólico.
Assim, a posição social
dos sujeitos revela sua função determinante do resultado de condenação
absolvição criminal no processo de criminalização: a variável decisiva da
criminalização secundária é a posição social do autor. A criminalidade sistêmica
econômica e financeira do autor pertencente aos grupos socais hegemônicos não
produz consequências penais: não gera processos de criminalização, ou os
processos de criminalização não geram consequências penais; ao contrario, a
criminalidade individual violenta ou
fraudulenta de autor pertencente a segmentos sociais subalternos – como
individuo socialmente vulnerável selecionado por estereótipos, preconceitos e
outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social – produz
consequências penais: gera processos de criminalização, com consequências
penais de rigor punitivo progressivo, na relação direta das variáveis de
subocupação, desocupação e marginalização do mercado de trabalho
Sabe-se que o art. 66 do
Código Penal assevera que
Art. 66. A pena
poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou
posterior ao crime,embora não prevista expressamente em lei.
O professor Celso Delmanto
assevera que:
Além das
atenuantes explicitamente arroladas no art.65, este art.66 ainda prevê
as chamadas circunstâncias atenuantes inominadas (ousem nome). Por elas,
haverá atenuação da pena em razão de circunstância relevante, anterior
ou posterior á prática do crime, embora não prevista em lei de forma expressa.
Assim, independentemente da época de sua ocorrência, a pena poderá ser atenuada
por circunstância relevante. Exemplo: anos antes de cometer um crime
grave, ainda não julgado, o acusado arriscou sua vida para salvar vítimas de um
incêndio ou desastre; após o cometimento de homicídio culposo no trânsito, o
agente passa a dedicar-se a difundir as regras de trânsito em escolas. O juiz
pode considerar que a circunstância não tem relevância para atenuar a pena e
deixar de diminuí-la. Todavia, não se trata de mero arbítrio do julgador.
Assim, se a mesma circunstância inominada incide, identicamente, para dois
acusados, não se pode atenuar a pena de um e recusá-la para outro. Apesar do
verbo "poderá", trata-se de direito subjetivo do réu, que não lhe
pode ser recusado quando a circunstância tem relevância para atenuar a pena.
Dessa forma, a
vulnerabilidade pode ser considerada pelo magistrado para atenuar sua pena se
esta situação mostrar-se evidente nos autos. Tal medida transforma o Direito
Penal em um instrumento menos injusto e mais adequado à realidade social
brasileiro.
Bibliografia
BARATTA,
Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
BATISTA,
Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan,
11ª ed., 2007.
ELBERT,
Carlos Alberto. Novo Manual Básico de Criminologia. Tradução de Ney Fayet
Júnior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
SANTOS,
Juarez Cirino. A Criminologia radical. Curitiba: IPCP: Lumen Juris, 2006.
ZAFFARONI,
Eugenio Raul. Em busca das penas
perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5.ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2001.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal:
introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
Zaffaroni, Eugenio Raul. Criminología:
una aproximación desde el margen. Capítulo 5: Consolidación del saber criminológico
racista-colonialista in JN Escritos
Monográficos.