O Direito Penal do Terror como solução pregada pela
mídia para cessar o aumento da criminalidade: uma falácia conveniente a um
discurso autoritário
Rodrigo Murad do Prado
Defensor Público do Estado de Minas Gerais
Mestre em Direito Processual
Pós-graduado em Direito Privado
Pós-graduando em Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública
Professor Universitário
O Direito Penal na atualidade vem sendo
rotineiramente bombardeado pela mídia que, com o fim de estancar a sensação
social de impunidade diante da gravidade de alguns crimes e em razão da demora
na resposta judiciária penal que, por diversas vezes, acarreta a prescrição da
pretensão punitiva extinguindo a punibilidade daqueles que figuram como
acusados em processo crime, fazendo emergir um Direito Penal do Terror sob o
argumento da maximização das punições, mitigação das garantias e tangenciamento
de direitos e garantias processuais penais previstos na constituição.
O Direito Penal do Terror corresponde às atrocidades
praticadas pelo Estado instituído pelos regimes Nazista e Fascista, na Alemanha
e Itália nos idos dos anos 30 e 40. Naqueles Estados, as perseguições aos
“diferentes” (prostitutas, mixes, deficientes físicos e mentais, homossexuais,
judeus etc.) foram realizadas com base na lei penal formalmente aprovada pelos
então chamados representantes do povo. A constituição do III Reich foi alterada
para, modificando o pontificado pelo princípio da legalidade (não há crime sem
lei anterior que o defina nem pena sem previa cominação legal), surgir um
princípio ao qual descrevia que “considerava-se
crime tudo aquilo que sã consciência do povo alemão disser que o seja”. Ora!
De quem era a consciência do povo alemão? Indago exclamando o seguinte: era do
Füher.
Sabe-se que o nazismo foi buscar no professor Edmund
Mezger [1]um
programa para extirpar da comunidade aqueles que, por ocasião de um hábito,
doença, necessidade ou condição pessoal, eram indesejados a conviver sob os
dogmas daquele povo dito como sendo arianos[2].
O professor Edmundo Mezger[3] era
reconhecidamente um dos grandes juristas alemães da época e o nacional
socialismo encomendou a ele o estudo e preparação de atos inovadores na ordem
jurídica capaz de estatuir um programa denominado ESTRANHOS À COMUNIDADE. Tal programa, como anteriormente dito,
destinava-se a exterminar as pessoas que não se coadunavam com o estereótipo
exigido pelo regime vigente. Daí, surgem os fornos crematório, atos de
perseguição, segregação em campos de concentração assassinatos em massa,
estupros seguidos de morte, cassação de bens e, ao final, a adoção da nefasta
SOLUÇÃO FINAL consistente na adoção das câmaras de gás.
Essa época foi marcada pelo ESTADO DE DIREITO. O direito
penal era um instrumento de DISSEMINAÇÃO DO TERROR. O regime instituía, sob o
enfoque legal, um procedimento sumaríssimo, extremamente inquisitivo, que
tolhia os direitos de defesa e enxovalhava a pessoa humana submetida a tal
ordem vigente e visava à eliminação do indivíduo. Não se tratava sequer de um
direito penal do autor, mas, sim, peço licença para utilizar o termo direito
penal dos seres diferentes. Seres humanos que não possuíam o reconhecimento de
sua condição humana por adotarem modos de vida, possuírem deficiências ou
crenças estranhas ao regime vigente.
Não se falava em fato. Não se falava em direitos de
defesa. O ser humano não era considerado como tal. Era submetido a uma sub-raça
e era estigmatizado como algo que vivia entre os arianos e os animais.
O procedimento,
como dito, era sumário. A pena era a de MORTE! A execução da pena era cruel[4].
Essa idiossincrasia vem sendo resgatada com o movimento
populista penal, onde, há muito tempo, a nação brasileira crê que a criação
rotineira de tipos penais é capaz de inibir as condutas criminosas. A crença de
que penas mais severas e eliminação de garantias processuais consistentes na
redução das hipóteses recursais e na busca de uma sanção desproporcional e
desarrazoada a todo o custo[5].
GOMES e BIANCHINI, em sua
obra “O Direito Penal na Era da Globalização”, apontam as características do
atual contexto da sociedade ‘pós-industrial’, ‘de risco’ e ‘globalizada’:
“- a
deliberada política de criminalização; - as freqüentes e parciais alterações
pelo legislador da Parte Especial do Código Penal através de leis penais
especiais, com intensificação dos movimentos de descodificação; 68 - a proteção
funcional dos bens jurídicos, com preferência para os bens difusos, forjados
muitas vezes de forma vaga e imprecisa; - a ampla utilização da técnica dos
delitos de perigo abstrato, com uma relativização do conceito de bem
jurídico-penal; - o menosprezo ao princípio da lesividade ou ofensividade;
- o uso do Direito Penal como
instrumento de “política de segurança”, em contradição com sua natureza
subsidiária e fragmentária; - a transformação funcionalista de clássicas
diferenciações dogmáticas (autoria e participação, consumação e tentativa, dolo
e imprudência etc.) fundadas na imputação objetiva e subjetiva do delito,
inclusive porque a imputação individual acaba constituindo obstáculo para a eficácia
da nova política criminal de prevenção; - a responsabilidade penal da pessoa
jurídica;
- o endurecimento da fase executiva
da pena, inclusive por meio de inconstitucionais medidas provisórias; 70 - a
privatização e terceirização da Justiça.
Ademais, para alcançar a meta da
efetividade, o próprio processo penal está sofrendo profundas alterações, quase
sempre orientadas para a aceleração do procedimento, agilização da instrução e
rapidez da Justiça, desrespeitando direitos e garantias fundamentais em nome da
operatividade da intervenção penal.”
Há muito tempo sabemos que, mesmo com o advento de
inúmeras leis extravagantes e dotadas de alto poder intimidador, os índices de
criminalidade não foram reduzidos. O que houve, sim, foi seu aumento.
A prática do etiquetamento (labeling approach)
possibilitou o aumento da criminalidade. O direito penal passou a ter um papel
de educador subsidiário. A crença de que o implemento de leis incriminadoras e
a pena nelas cominadas em seus preceitos secundários seria capaz de substituir
a OMISSÃO do Estado em propiciar à seus súditos a formação de princípios ou o
resgate dos mesmos, possibilitando um convívio social menos violento e violador
dos valores elegidos como importantes, tem sua força. Apenas força, voz, mas nenhum
efeito prático[6]!
Como já disse outrora Gustav Radbruch[7] que “não devemos fazer um direito penal melhor,
mas sim algo melhor que o direito penal!”.
O direito penal não deve ter um papel educador.
A inflação legislativa com o fim de crescentemente
criminalizar condutas e ampliar a dosagem de penas em nada contribui para
afastar o crescimento da criminalidade pois, como se reflete aqui, QUEM LÊ O
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO TODOS OS DIAS?[8]
Onde está a função PREVENTIVA GERAL da pena se o aumento
da tipificação de condutas não conduz à diminuição da criminalidade? Na
realidade o que temos é um aumento dela[9].
O direito penal não pode exercer um papel deste tipo[10] uma
vez que é este ramo do direito o possuidor da mais severa das sanções: a
prisão, a segregação social, a aniquilação do convívio comunitário daquele que
viola a norma abstrata[11].
Como ultima ratio
(última força) deve ser ele interpretado.
A conquista de direitos humanos após a II Guerra Mundial como
norma universal objeto de tratado internacional ao qual nossa república se
obrigou e que regularmente ingressou em nossa ordem jurídica nos termos da
CRFB/1988, foi um marco que não pode ser, sob qualquer argumento, mitigado.
Devemos manter a adoção de um Direito Penal do FATO. Neste,
se analisa a conduta humana que dá causa a um resultado previsto como sendo
criminoso, em uma normal penal anterior a ele e regularmente inserida na ordem
jurídica, praticado contrariamente ao direito e que, seu agente, possua
capacidade biológica e psicológica, de entendimento de seu caráter ilícito,
dele exigindo-se uma conduta diversa daquela empreendida.
O direito penal deve preservar as garantias conquistadas
pela humanidade[12]
pois que, em matéria de direitos humanos conquistados, é princípio do direito internacional
a proibição de seu retrocesso.
A ampla defesa, o devido processo legal, o contraditório
com paridade de armas, a proibição da prova obtida por meios ilícitos, a
proibição do julgador de exceção, a presunção de não culpabilidade (inocência
presumida), a proibição da produção de prova contra si mesmo; a proibição do non bis in idem, proibição das penas
cruéis, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e de morte
(salvo nos casos de guerra declarada nos termos da CRFB/1988), dentre outros,
são direitos que não podem ser tangenciados sob qualquer argumento[13].
O processo penal não pode ser visto como um instrumento
para que o Estado eduque aquele que não se porta de forma condizente com o
exigido pela sociedade, socorrendo-se deste ramo do Direito para corrigir o
erro praticado por ele, Estado, em não propiciar uma educação adequada àquele
que está à margem[14].
O processo penal deve ser entendido como o instrumento
pelo qual o cidadão possui para evitar eventuais arbitrariedade que o Estado,
ao exercer o poder punitivo, vier a cometer.
O discurso tentador utilizado pela mídia não pode
conduzir a sociedade a esquecer das tragédias e atrocidades do passado para,
ainda que de forma legítima e por mais altruísta que pareça ser a intenção,
resgatar o terror como instrumento de imposição da ordem necessitada segundo os
valores sociais queridos.
Bibliografia:
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado.
Rio de Janeiro: Graal, 1983.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão da Segurança
Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto alegre:
Livraria do Advogado, 1997.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica
do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 2 ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2006.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Reação
Social. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
CALHAU, Lélio Braga. Resumo de criminologia. 6. ed.
Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação
Histórica dos Direitos Humanos.
São Paulo: Editora Saraiva, 4a. edição, 2005
COSTA, Alvaro
Mayrink. Criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005
DARHENDORF, Ralf. A lei e a ordem, p.109.
DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e movimentos de
política criminal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia – O
homem delinqüente e a sociedade criminógena, p. 411
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de criminologia. 3. ed.
Curitiba: Juruá, 2006
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del
garantismo penal. Madri: Trotta, 1997.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas.
Rio de Janeiro: Nau, 1996.
FOUCAULT, Michel. Micro-física do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1995, 11 reimpressão.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da
Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 2006.
GOFFMAN, Ervin. Manicômios, Prisões e Conventos. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
GRECO, Rogério. Direito Penal
do Equilíbrio – Uma visão minimalista do Direito Penal. Niterói: Editora
Impetus
HULSMAN, Louk, BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas
Perdidas : o sistema penal em questão. Rio de Janeiro: Luam, 1993.
JAKOBS, Güinther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, p.
40.
Luisi, Luiz. Os princípios constitucionais penais,
p. 28-29.
MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund
Mezger e o direito penal de seu tempo, p. 64-65.
ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito
Penal. 2 ed. Lisboa: Ed. Veja, 1993.
RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e
estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
SANTOS, Juarez
Cirino. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981
TAYLOR, Ian (org.); WALTON, Paul (org.); YOUNG, Jock
(org.). Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria, p. 26.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente, p. 199-200.
ZAFFARONI, Eugenio Raul;
PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5.ª
ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004
ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da
legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
[1] Edmund
Mezger (Basel,
15
de outubro de 1883
- Göppingen,
24
de março de 1962)
foi um advogado criminalista e teórico penal alemão. Desde a
República de Weimar, passando pelas duas
guerras mundiais, Mezger fez importantes contribuições para a dogmática do direito
penal, especialmente para a compreensão do "fato" (tipo penal
- Tatbestandslehre), os elementos subjetivos da antijuridicade e o
conceito de culpa.
[2] MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund
Mezger e o direito penal de seu tempo, p. 64-65.
[3] Em 1925 Mezger foi professor em Marburg, e desde 1932 lecionou em Munique. Durante o período nazista foi membro da NS - Akademie für Deutsches Recht (Academia
Nacional Socialista para o Direito Alemão).1 e, ao lado de Franz Exner, um dos
mais proeminentes representantes da criminologia alemã. Em 1935 escreveu com a
colaboração de Hans Frank o Nationalsozialistischem
Handbuch (tratado para orientação jurídica do estado nazista) e Der
strafrechtliche Schutz von Staat, Partei und Volk (A proteção penal do
Estado, do Partido e do Povo).1
Em
1935 definiu como atividades ilícitas "todas as ações contra a ideologia
nacional-socialista alemã"2 . Durante a II Guerra Mundial fez parte da Comissão de
Direito Penal dos ministros da Justiça do Reich Franz Gürtner e Roland Freisler.1
[4] JAKOBS, Güinther; CANCIO MELIÁ,
Manuel. Derecho penal del enemigo, p. 40.
[6] DIAS, Jorge de Figueiredo;
ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia – O homem delinqüente e a sociedade
criminógena, p. 411
[7] RADBRUCH,
Gustav. Introdução à ciência do direito.
Tradução Vera Barkow. Revisão técnica Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 118-119
[10] GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio – Uma visão
minimalista do Direito Penal. Niterói: Editora Impetus
[12] COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação
Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo:
Editora Saraiva, 4a. edição, 2005
[14] ZAFFARONI, Eugenio Raul;
PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5.ª
ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004