quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Embriagues ao volante: prova legal ou tarifada?

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. EXAME. ALCOOLEMIA. Antes da reforma promovida pela Lei n. 11.705/2008, o art. 306 do CTB não especificava qualquer gradação de alcoolemia necessária à configuração do delito de embriaguez ao volante, mas exigia que houvesse a condução anormal do veículo ou a exposição a dano potencial. Assim, a prova poderia ser produzida pela conjugação da intensidade da embriaguez (se visualmente perceptível ou não) com a condução destoante do veículo. Dessarte, era possível proceder-se ao exame de corpo de delito indireto ou supletivo ou, ainda, à prova testemunhal quando impossibilitado o exame direto. Contudo, a Lei n. 11.705/2008, ao dar nova redação ao citado artigo do CTB, inovou quando, além de excluir a necessidade de exposição a dano potencial, determinou a quantidade mínima de álcool no sangue (seis decigramas por litro de sangue) para configurar o delito, o que se tornou componente fundamental da figura típica, uma elementar objetiva do tipo penal. Com isso, acabou por especificar, também, o meio de prova admissível, pois não se poderia mais presumir a alcoolemia. Veio a lume, então, o Dec. n. 6.488/2008, que especificou as duas maneiras de comprovação: o exame de sangue e o teste mediante etilômetro (“bafômetro”). Conclui-se, então, que a falta dessa comprovação pelos indicados meios técnicos impossibilita precisar a dosagem de álcool no sangue, o que inviabiliza a necessária adequação típica e a própria persecução penal. É tormentoso ao juiz deparar-se com essa falha legislativa, mas ele deve sujeitar-se à lei, quanto mais na seara penal, regida, sobretudo, pela estrita legalidade e tipicidade. Anote-se que nosso sistema repudia a imposição de o indivíduo produzir prova contra si mesmo (autoincriminar-se), daí não haver, também, a obrigação de submissão ao exame de sangue e ao teste do “bafômetro”. Com esse entendimento, a Turma concedeu a ordem de habeas corpus para trancar a ação penal. Precedente citado do STF: HC 100.472-DF, DJe 10/9/2009. HC 166.377-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 10/6/2010.
O julgado confirma o entendimento de que a Lei 11.705/2008, a pretexto de agravar a conduta de embriaguez ao volante, por atecnia, acabou atenuando.
Como ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, nem o exame de sangue ou o teste de “bafômetro” podem ser exigidos do motorista, acabando por inviabilizar a comprovação da materialidade delitiva.
Ao trazer a quantidade de álcool por sangue como elementar objetiva do tipo penal, o legislador restringiu os meios de prova destinados a comprovar a prática do crime. Uma espécie de prova legal ou tarifada, talvez.
A correção do equívoco será possível com nova alteração legislativa ou quiça com o avanço tecnológico apresentando novos aparelhos capazes de apurar a quantidade de álcool no sangue sem depender da concordância do motorista.
Enquanto isso, remanesce a infração administrativa que, diga-se de passagem, incute grande temor ao motorista. Uma fiscalização consistente e rotineira pelas Autoridades de Trânsito, culminando com a simples infração administrativa, pode ser mais eficaz que a intervenção do Direito Penal nesse caso, mormente diante do anacrônico tipo penal em comento.

Seleção policial e seletividade do sistema punitivo


Sou policial militar e estava em patrulhamento de rotina, por um local conhecido como ponto de tráfico de drogas, quando deparei com o réu e suspeitei dele. Por isso o abordei e encontrei, no bolso da sua bermuda, a droga mencionada na denúncia. Também estava com dinheiro e não soube explicar sua origem. Então lhe dei voz de prisão por tráfico e o conduzi para o Plantão Policial. Não o conhecia antes. Suspeitei dele em razão de suas vestes e pelo local em que se encontrava. O réu não reagiu ou esboçou qualquer reação por ocasião da abordagem. Ele colaborou com a operação policial. Ele disse que a droga era para seu consumo.
Com algumas variantes, mas normalmente com esse núcleo, é rotineiro deparar com depoimentos de policiais com aquele conteúdo.
Não se está efetuando qualquer juízo de valor acerca da atuação do policial. Até porque, ante o oceano que é a prática do tráfico de drogas perto da escassez de policiais que temos para combatê-lo, natural que haja critérios de eleição das pessoas que serão abordadas rotineiramente. É humanamente impossível que seja diferente.
Outrossim, apenas se está a lançar luz, com o objetivo de colocá-lo em debate, sob um ponto de atuação de uma das agências responsáveis pelo controle do crime, no caso a polícia.
O próprio Código de Processo Penal, no qual se baseou o policial para efetuar a busca pessoal, também já traz um critério seletivo que merece atenção. Vejamos:
Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior
Fundada suspeita é conceito subjetivo que depende não só do caso concreto, mas sobretudo de pré-conceitos daqueles que irão realizar a busca pessoal. Ou seja, quem são e como são as pessoas que costumam trazer consigo objetos ilícitos? E como normalmente agem essas pessoas?
É preciso, destarte, que haja um estereótipo das pessoas que sofrerão a incidência de uma busca pessoal. E, caso o indivíduo se encaixe naquele estereótipo, sofrerá a fiscalização.
A atuação do policial, evidente, não criou o crime de tráfico naquela situação. Mas possibilitou a sua descoberta e a inserção deste delito nas estatísticas oficiais.
Todavia, quantos outros indivíduos, que quiçá não teriam o estereótipo da fundada suspeita, também estavam traficando e passaram ilesos a uma abordagem policial?
A lição de Cesare Lombroso, de que é possível traçar um biótipo de delinquente, pode também ser analisada de forma inversa. Aquelas características por ele apontadas não são a causa do comportamento criminoso. Podem também ser a consequência. Ou seja, só os criminosos com aquele perfil é que seriam descobertos. O que não quer significar que todos os criminosos tenham aquele perfil.
Reitere-se que a atuação policial foi legítima. Mas aquela constatação empírica apenas reforça a ideia de que há uma seletividade de crimes e criminosos a ingressarem nas estatísticas oficiais. E isso cria uma espécie de retroalimentação: apenas aquele perfil de criminoso é descoberto e passa-se à conclusão de que apenas aquele tipo de pessoas cometem aquele delito. E só elas são objeto de atenção das instâncias de controle do crime.
São os estereótipos que, em grande parte, determinam para onde a polícia se deve dirigir e que tipos de pessoas deve abordar. As investigações empíricas- que se multiplicaram após o já clássico artigo de PILIAVIN e BRIAR e adoptando o seu método de observação participante- apresentam resultados particularmente convergentes. A polícia tende a deslocar-se para áreas habitadas por minorias desclassificadas e a abordar sobretudo as pessoas que- pela cor da pele, gestos, modos de vestir, corte de cabelo ou barba, etc- são a imagem exterior da desconformidade. Comparados com os outros- escrevem PILIAVIN e BRIAR, descrevendo a situação norte- americana- os jovens negros e aqueles cuja aparência corresponde ao estereótipo do delinquente eram mais frequentemente abordados e interrogados, muitas vezes mesmo sem quaisquer indícios da prática de crime 9…0. A polícia justificava o seu tratamento seletivo em termos epidemiológicos: concentrando a sua atenção sobre aqueles jovens que, segundo acreditava, mais provavelmente cometeriam crimes.
A força dos estereótipos radica, assim, no postulado da congruência entre a imagem exterior, a conduta e a própria identidade. É este mesmo postulado que leva a polícia a encarar com particular suspeição as descontinuidades entre a conduta, a imagem exterior e o próprio cenário. E, a acreditar, v.g, que para reproduzir, ainda uma vez, a experiência norte-americana- um jovem branco num bairro de negros procura naturalmente sexo ou droga; e que, inversamente, um jovem negro num bairro residencial elegante se prepara naturalmente para qualquer crime patrimonial. (DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 451-452)
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