quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Seleção policial e seletividade do sistema punitivo


Sou policial militar e estava em patrulhamento de rotina, por um local conhecido como ponto de tráfico de drogas, quando deparei com o réu e suspeitei dele. Por isso o abordei e encontrei, no bolso da sua bermuda, a droga mencionada na denúncia. Também estava com dinheiro e não soube explicar sua origem. Então lhe dei voz de prisão por tráfico e o conduzi para o Plantão Policial. Não o conhecia antes. Suspeitei dele em razão de suas vestes e pelo local em que se encontrava. O réu não reagiu ou esboçou qualquer reação por ocasião da abordagem. Ele colaborou com a operação policial. Ele disse que a droga era para seu consumo.
Com algumas variantes, mas normalmente com esse núcleo, é rotineiro deparar com depoimentos de policiais com aquele conteúdo.
Não se está efetuando qualquer juízo de valor acerca da atuação do policial. Até porque, ante o oceano que é a prática do tráfico de drogas perto da escassez de policiais que temos para combatê-lo, natural que haja critérios de eleição das pessoas que serão abordadas rotineiramente. É humanamente impossível que seja diferente.
Outrossim, apenas se está a lançar luz, com o objetivo de colocá-lo em debate, sob um ponto de atuação de uma das agências responsáveis pelo controle do crime, no caso a polícia.
O próprio Código de Processo Penal, no qual se baseou o policial para efetuar a busca pessoal, também já traz um critério seletivo que merece atenção. Vejamos:
Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior
Fundada suspeita é conceito subjetivo que depende não só do caso concreto, mas sobretudo de pré-conceitos daqueles que irão realizar a busca pessoal. Ou seja, quem são e como são as pessoas que costumam trazer consigo objetos ilícitos? E como normalmente agem essas pessoas?
É preciso, destarte, que haja um estereótipo das pessoas que sofrerão a incidência de uma busca pessoal. E, caso o indivíduo se encaixe naquele estereótipo, sofrerá a fiscalização.
A atuação do policial, evidente, não criou o crime de tráfico naquela situação. Mas possibilitou a sua descoberta e a inserção deste delito nas estatísticas oficiais.
Todavia, quantos outros indivíduos, que quiçá não teriam o estereótipo da fundada suspeita, também estavam traficando e passaram ilesos a uma abordagem policial?
A lição de Cesare Lombroso, de que é possível traçar um biótipo de delinquente, pode também ser analisada de forma inversa. Aquelas características por ele apontadas não são a causa do comportamento criminoso. Podem também ser a consequência. Ou seja, só os criminosos com aquele perfil é que seriam descobertos. O que não quer significar que todos os criminosos tenham aquele perfil.
Reitere-se que a atuação policial foi legítima. Mas aquela constatação empírica apenas reforça a ideia de que há uma seletividade de crimes e criminosos a ingressarem nas estatísticas oficiais. E isso cria uma espécie de retroalimentação: apenas aquele perfil de criminoso é descoberto e passa-se à conclusão de que apenas aquele tipo de pessoas cometem aquele delito. E só elas são objeto de atenção das instâncias de controle do crime.
São os estereótipos que, em grande parte, determinam para onde a polícia se deve dirigir e que tipos de pessoas deve abordar. As investigações empíricas- que se multiplicaram após o já clássico artigo de PILIAVIN e BRIAR e adoptando o seu método de observação participante- apresentam resultados particularmente convergentes. A polícia tende a deslocar-se para áreas habitadas por minorias desclassificadas e a abordar sobretudo as pessoas que- pela cor da pele, gestos, modos de vestir, corte de cabelo ou barba, etc- são a imagem exterior da desconformidade. Comparados com os outros- escrevem PILIAVIN e BRIAR, descrevendo a situação norte- americana- os jovens negros e aqueles cuja aparência corresponde ao estereótipo do delinquente eram mais frequentemente abordados e interrogados, muitas vezes mesmo sem quaisquer indícios da prática de crime 9…0. A polícia justificava o seu tratamento seletivo em termos epidemiológicos: concentrando a sua atenção sobre aqueles jovens que, segundo acreditava, mais provavelmente cometeriam crimes.
A força dos estereótipos radica, assim, no postulado da congruência entre a imagem exterior, a conduta e a própria identidade. É este mesmo postulado que leva a polícia a encarar com particular suspeição as descontinuidades entre a conduta, a imagem exterior e o próprio cenário. E, a acreditar, v.g, que para reproduzir, ainda uma vez, a experiência norte-americana- um jovem branco num bairro de negros procura naturalmente sexo ou droga; e que, inversamente, um jovem negro num bairro residencial elegante se prepara naturalmente para qualquer crime patrimonial. (DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 451-452)

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